Uma antiga demanda do varejo é a redução do prazo de recebimento das vendas realizadas no cartão de crédito.
O prazo atual, de 30 dias, em média, leva muitos estabelecimentos comerciais a gastarem com juros em operações de antecipação de recebíveis.
Pior ainda quando a venda é parcelada sem juros, quando o valor também é recebido pelo lojista somente em parcelas mensais.
“É um absurdo! Pago juros por um dinheiro que é meu! ”, costuma reclamar um amigo, dono de uma loja de calçados no centro de São Paulo.
Verdade. Ao menos parte deste custo, porém, é repassado pelo comércio aos preços dos bens e serviços – e pago, portanto, pelos consumidores. “É….”, responde meu amigo, sem discordar.
Ante a pressão do varejo, contudo, o setor financeiro fez sua proposta: reduzimos o prazo do pagamento para os lojistas, mas passamos a cobrar do consumidor juros nas vendas parceladas. Que tal?
A conta é simples. O dinheiro tem um valor no tempo: a taxa de juros. Hoje, o prazo de recebimento dos lojistas subsidia –ao menos parcialmente –o prazo de pagamento dos consumidores, que só liquidam as compras com cartão de crédito no vencimento da fatura.
Com a redução do prazo de recebimentos dos lojistas, os consumidores passariam a arcar com os juros nas compras a prazo – será que seriam ao menos compensados pela redução de preços dos bens e serviços?
Um dos possíveis efeitos negativos da mudança é a redução do consumo – ruim para o comércio e para a economia – decorrente do fim do parcelamento sem juros, enraizado nos hábitos dos brasileiros.
Outro efeito negativo é uma potencial redução da concorrência no mercado de maquininhas a médio prazo.
Como assim?
Explico-me.
No Brasil, o mercado de cartões é bastante verticalizado, com os grandes bancos (emissores) donos das principais credenciadoras (as donas das maquininhas).
Desde 2010, com o fim da exclusividade entre credenciadoras e bandeiras, novas empresas entraram no mercado, resultando em aumento da concorrência e queda da taxa média de desconto – taxa sobre o valor das vendas no cartão paga pelos lojistas às credenciadoras –, que, no caso do cartão de crédito, passou de 2,95% em 2009 para 2,65% em 2016.
Por outro lado, a taxa média de intercâmbio –parcela da taxa de desconto repassada pela credenciadora ao emissor do cartão que realizou a compra –subiu no mesmo período. No caso do cartão de crédito, de 1,35% em 2009 para 1,58% em 2016.
Em outras palavras, o aumento da concorrência no mercado de maquininhas derrubou as taxas para os lojistas e, consequentemente, as receitas das credenciadoras, que, além disto, viram aumentar a parcela repassada para os emissores de cartão.
Quando, a partir das informações disponíveis de volume de vendas em cartões, taxas médias de desconto e taxas médias de intercâmbio, estimamos o volume das receitas que ficam para emissores e credenciadores, notamos que, dos R$ 24,4 bilhões gastos pelos lojistas em 2016 com as taxas dos cartões, 58% ficaram com os emissores. Em 2009, este percentual era de apenas 47%.
Uma possível explicação para o fenômeno está exatamente na verticalização do mercado.
Com o aumento da concorrência entre as maquininhas, buscou-se compensar a perda de receitas das credenciadoras – cujos donos, vale lembrar, são os principais emissores (bancos) – com o aumento relativo da receita dos emissores, equilibrando-se, assim, o resultado do negócio integrado de cartões e limitando a capacidade de competir das novas credenciadoras, não ligadas a bancos.
E o que a redução do prazo de recebimento dos lojistas tem a ver com isto?
Pois bem.
Pudemos constatar que a queda das taxas para os lojistas foi acompanhada pela redução das margens das credenciadoras, que viram a concorrência crescer com a entrada de novas empresas neste mercado após o fim da exclusividade entre credenciadoras e bandeiras – atualmente, todas as maquininhas aceitam as principais bandeiras.
Os grandes bancos, donos das principais credenciadoras, podem tratar o negócio de cartões de forma integrada e compensar a perda de margem destas empresas com aumento da receita da taxa de intercâmbio.
Além disto, poderiam compensar o fim das receitas da antecipação de recebíveis – consequência direta da redução do prazo para os lojistas – com os juros que passariam a ser pagos pelos consumidores nas vendas parceladas no cartão de crédito.
Ao contrário das novas credenciadoras, que não estão ligadas a emissores, perdem com o aumento da taxa de intercâmbio e ainda veriam as suas receitas caírem drasticamente tanto pelo fim da antecipação quanto do parcelamento sem juros, cuja taxa de desconto é maior.
Com a queda das receitas e das margens, as novas credenciadoras (cuja escala da operação é menor, resultando em maiores custos por transação) veriam reduzida sua capacidade de concorrem via preço, de forma que, no limite, poderíamos ter diminuição da concorrência e elevação das taxas de desconto, prejudicando, com isto, os lojistas…
Sim, o buraco é mais embaixo, o imbróglio é mais complicado do que parece em um primeiro momento…
Características específicas do mercado brasileiro de cartões demandam cautela na adoção de medidas para aprimorar o sistema de pagamentos.
Conforme argumentei no meu artigo anterior (“Parcelado em apuros”), mudanças para incentivar a expansão dos meios eletrônicos e a inclusão financeira exigem uma avaliação criteriosa de custos e benefícios para todos os envolvidos, contemplando também os eventuais ganhos sociais.
Fica assim o alerta para o varejo: quanto o cobertor é curto, corre-se o risco de cobrir a cabeça, mas acabar descobrindo os pés.
FONTE: Por Vitor França | Economista, é professor universitário e consultor da Boanerges & Cia., especializada em varejo financeiro / Diário do Comércio